terça-feira, dezembro 21, 2010

Dirigir com sono

É tão ruim quanto dirigir bêbado. Aprenda a reconhecer o perigo.
Por Dirley Fernandes

Depois de participar do funeral de um amigo, em Santarém (PA), no dia 7 de agosto do ano passado, Dom Gilberto Pastana, 51 anos, foi para a cama preocupado. No dia seguinte, pegaria a estrada em direção a Imperatriz (MA), onde é bispo diocesano. Pela manhã, Dom Gilberto partiu dirigindo pela rodovia Belém-Brasília.

Percorrer 600 quilômetros para vencer as distâncias entre Imperatriz e Santarém é comum para quem vive na região, mas exigia grande esforço do religioso, que, em razão das obrigações do trabalho eclesiástico, rotineiramente dormia tarde. Dom Gilberto não gostava de viajar só, mas, daquela vez, não teve alternativa. Na altura do quilômetro 90, depois de cinco horas ao volante, surgiu uma grande reta, antes de Ulianópolis (PA). O bispo vinha a 100 km/h com seu Gol. Sem aviso prévio e sem tempo para que tivesse qualquer reação, o sono o atingiu em cheio.

Quando Dom Gilberto despertou, a roda dianteira direita do carro já estava no declive após o acostamento. Ele tentou dar uma guinada para a esquerda, mas o carro derrapou. No susto, tentou uma nova guinada para a direita, ao mesmo tempo que pisava no freio.

“Foi nessa hora que o carro começou a capotar”, conta o bispo. Depois de três capotagens, o que restava do automóvel parou com as rodas para o ar. “Eu estava tonto, mas inteiro. Minha mala foi arremessada a vinte metros de distância, mas eu fiquei preso ao cinto, de cabeça para baixo”, lembra.

Motoristas com sono podem representar um perigo tão ou mais grave do que o álcool ou a velocidade excessiva nas estradas, pois têm a atenção profundamente prejudicada. Um estudo publicado pela Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) estima que até 50% dos acidentes em rodovias federais brasileiras podem estar relacionados ao sono dos condutores.
No corpo humano, o ciclo vigília-sono apresenta dois períodos em que a pressão para dormir é maior. O principal é entre duas e quatro da manhã, e o outro, entre o início e o meio da tarde. A maioria das pessoas atribui o sono que sente à tarde à quantidade de comida no almoço. Mas o verdadeiro culpado é nosso relógio biológico.

“Quando uma pessoa está sonolenta, a capacidade de concentração diminui muito”, afirma o neurologista Geraldo Rizzo, do Sonolab – Laboratório do Sono de Porto Alegre (RS). “Nesse estado, o motorista superestima sua capacidade. Acha que consegue chegar ao destino e vai empurrando com a barriga. Mas a única solução é parar de dirigir imediatamente e dormir.”

Não “engane” seu corpo
Outro estudo publicado pela Abramet revela que não há saída segura para o motorista que queira ficar acordado quando o sono chega. “Café, chá preto e refrigerantes com cafeína podem auxiliá-lo a se sentir mais desperto, mas os efeitos duram pouco. E a pessoa ainda pode ser suscetível aos microssonos – breves cochilos que duram de um a cinco segundos.”

Outro estudo, esse da Confederação Nacional do Transporte (CNT), atesta: dormir ao volante é responsável por cerca de 30% dos acidentes, principalmente em condições monótonas (grandes retas e longas distâncias).
Antônio José Martins* descobriu isso em setembro de 2006, numa estrada do oeste de São Paulo. Antônio, então com 42 anos, vinha com a mãe, a pecuarista Maria das Graças Martins,* de uma visita a uma fazenda da família no Mato Grosso do Sul e se dirigia para outra propriedade, em São Paulo.

A Rodovia Marechal Rondon tem duas pistas em cada sentido e é muito bem conservada. Mas a paisagem é monótona, ladeada por campos extensos. Por volta do meio-dia, enquanto a mãe dormia, Antônio cochilou numa reta.
A caminhonete saiu da pista e capotou. Com o impacto, Antônio acordou, mas pouco se lembra do que aconteceu a seguir. Sua mãe foi arremessada para fora do veículo. “Só me lembro das pessoas tentando ajudá-la.” Maria das Graças foi levada ao hospital, mas não resistiu a um traumatismo craniano. Antônio, que ficou terrivelmente abalado, sofreu pequenos cortes na cabeça e em um dos braços. Ele hoje evita tocar no assunto: “É uma grande ferida”, lamenta, com a voz embargada.

Dormir é fundamental
Uma pesquisa do Congresso Brasileiro do Sono estimou que 56% da população brasileira não dorme o suficiente para desempenhar as atividades de forma adequada. Apenas no Rio Grande do Sul, um estudo constatou que um em cada cinco motoristas apontou a sonolência como responsável por acidentes de trânsito que havia sofrido. Já em um estudo da Unifesp, de 2001, com motoristas de ônibus, 16% dos entrevistados admitiram já terem dormido ao volante. E 58% disseram conhecer colegas que também já cochilaram.

“O século 20 deixou como herança o fim de hábitos como a sesta, e luzes e estímulos novos surgiram, entre os quais a Internet, o que aumentou a duração do dia e das jornadas de trabalho”, explica Pedro Felipe Carvalhedo de Bruin, vice-presidente da Sociedade Brasileira do Sono. “As pessoas já começam a acumular um débito de sono na segunda-feira que se estende até a sexta, à qual já chegam extenuadas. O desempenho, o humor, a concentração e o raciocínio vão piorando”, alerta.

Nossa tendência é acreditar que, dormindo menos, produziremos mais e aproveitaremos melhor a vida. Mas os especialistas concordam: o sono adequado é que vai garantir a qualidade do nosso tempo acordado.

A maioria dos adultos precisa de oito a nove horas de sono por dia. Sem esse descanso, executar tarefas em estado de alerta se torna quase impossível. O neuropsicólogo paranaense Plínio Marco de Toni e seus alunos da Universidade Tuiuti entrevistaram 105 trabalhadores noturnos em dois momentos: quando eles estavam sob privação de sono e depois, em condições normais. “A diferença na atenção seletiva, a que precisamos para compreender, selecionar e reagir aos estímulos do ambiente, era gritante. A conclusão é que o desempenho profissional, ou mesmo a capacidade de reagir a um sinal vermelho no trânsito, é radicalmente menor quando há falta de sono.”

Quem corre perigo
Qualquer pessoa pode ser vítima do cansaço, mas algumas correm risco maior de sofrer um acidente:

Quem trabalha demais Trabalhar mais de 60 horas por semana aumenta em 40% o risco de acidentes no trânsito.

Trabalhadores noturnos No Brasil, pesquisadores advertem que os distúrbios do sono atingem de 60% a 80% das pessoas que trabalham em regime de turnos. Os trabalhadores noturnos são os mais afetados: até 90% deles sofrem de sonolência. E quanto mais tarde da noite trabalham, maior o risco.

Jovens “Muitos acidentes de madrugada acontecem não só por causa do álcool, mas da sonolência”, alerta Sueli Rossini, do Grupo de Pesquisa Avançada em Medicina do Sono do Hospital das Clínicas de São Paulo. “A Internet, segundo pesquisas recentes, tem levado a uma forte diminuição das horas dormidas pelos jovens.”

Homens Assim como as mulheres são mais propensas à insônia, a apnéia (distúrbio respiratório que interrompe a entrada de ar nos pulmões durante o sono e provoca sonolência diurna) atinge três vezes mais os homens.

Pessoas com distúrbios do sono Mais de 50 milhões de brasileiros sofrem de distúrbios do sono, como apnéia, narcolepsia, síndrome das pernas inquietas e insônia. E não há no país, como nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, restrições para que essas pessoas dirijam.

Há seis anos, Evenilson de Carvalho Elói, portador de narcolepsia e sob tratamento no Laboratório do Sono da Universidade de Brasília, tinha saído do trabalho, numa repartição pública, e seguia para casa. Não sentia nada de diferente quando desceu uma avenida em declive do Plano Piloto em direção a um sinal de trânsito, no ponto em que a avenida inicia uma nova subida. Chegou a ver quando a luz vermelha acendeu. Segundos depois, Evenilson atingia dois carros que estavam parados no sinal, sem ao menos ter tido tempo de frear. “A batida foi tão forte que o carro teve perda total. Por sorte todos sofreram apenas ferimentos leves.”

Na época, Evenilson sofria até dois surtos de narcolepsia por dia e dormia onde fosse – inclusive de pé, na fila do banco. Hoje, a doença está mais controlada, mas ele continua tomando estimulantes do sistema nervoso central – principalmente quando vai pegar no volante. “Passei nove anos sendo chamado de preguiçoso até receber o diagnóstico”, conta ele.

Negando a realidade
O Instituto de Transportes da Universidade Virginia Tech (VTTI), nos Estados Unidos, conduziu um estudo para determinar o impacto da falta de atenção nos motoristas. Pesquisadores instalaram câmeras em 100 carros de Washington e observaram os motoristas ao longo de um ano. Mas não estavam preparados para o que descobriram: dirigir com sono é um fator que contribuiu em 22% a 24% dos acidentes e quase-acidentes monitorados. E alguns motoristas nem perceberam que haviam adormecido ao volante até serem avisados pelos pesquisadores.

O policial rodoviário Adriano Frasson, que trabalhou por muito tempo na rodovia que liga Curitiba ao litoral paranaense, viu muitos motoristas com a habilidade prejudicada pelo cansaço. “Passavam por esse trecho famílias simples, vindas do oeste do estado, para aproveitar um feriado, e o motorista, sem o costume de tantas horas de viagem, dava cabeçadas de sono.” Em geral, um adulto dirige enquanto a família toda dorme. “E as crianças no banco de trás tiram o cinto de segurança para se acomodar melhor”, acrescenta Frasson. Se o motorista cochila, vai saindo devagar da estrada até que um obstáculo o desperta. No susto, vira o volante abruptamente e capota.

Montadoras de automóveis têm desenvolvido sistemas de segurança que podem ajudar a evitar acidentes por distração ou cansaço. Os equipamentos mais difundidos são o DAS (Driver Alert System) e o LDW (Lane Departure Warning). Eles monitoram, por meio de câmeras e sensores, o comportamento do carro na estrada. Caso o veículo se aproxime demais do acostamento ou da faixa que divide as pistas, uma campainha é acionada. Carros como o Volvo S80, à venda no Brasil, têm dispositivos desse tipo, que equipam caminhões há algum tempo.

Mudar idéias e leis
Embora especialistas acreditem que leis mais severas são cruciais para mudar o comportamento dos motoristas, essa é uma questão polêmica. Após um acidente, o motorista em geral fica alerta. Não há um teste que possa ser feito na hora pelo policial para determinar o nível de cansaço de quem estava dirigindo.

O policial Frasson lembra que, muitas vezes, ao chegar ao local de acidentes em que a falta de marcas de freio no asfalto demonstrava que o motorista cochilara e saíra da estrada, a alegação mais comum era uma “fechada” de outro veículo. “Fechada de olho!”, ele afirma. “Raramente alguém confessa, por vergonha ou medo de problemas com a seguradora”, conta.

Mesmo motoristas que admitem ter dormido ao volante não são responsabilizados por causar ferimentos ou a morte de alguém. Evenilson não teve de explicar a ninguém o seu acidente e nem informar que sofre de narcolepsia. Especialistas em sono alertam para o fato de que as leis de trânsito sequer prevêem que os médicos sejam obrigados a comunicar às autoridades a incapacidade, momentânea ou não, de um motorista sob tratamento.

No Brasil, acidentes provocados por motoristas sem condições de dirigir – seja por cansaço, falta de habilitação ou embriaguês –, com raras exceções, são classificados como crime culposo – sem intenção – e não doloso. Com isso, muitas vezes quem comete um crime de trânsito, inclusive com mortes, acaba cumprindo penas alternativas, como a doação de cestas básicas. Mas há movimentos pedindo a mudança do código de trânsito e penas mais severas para os criminosos.

A funcionária pública Rosemary Costa de Sá fundou, em dezembro do ano passado, o Movimento de Combate à Impunidade nos Crimes de Trânsito. E abriu uma página no site de relacionamentos Orkut em busca de adesões. “Abracei essa causa e vou lutar até a mudança da lei”, garante ela.

A motivação de Rosemary foi a morte do pai, atropelado em janeiro de 2007 por um motorista que dormiu ao volante e invadiu a calçada, a 150 metros de sua casa, no bairro de Casa Forte, no Recife. “O condutor estava embriagado. Mas nossa luta é mais ampla: responsabilizar por crime doloso todo aquele que pega o volante sem condições de dirigir”, diz ela. Felipe Rabello Emery, que atropelou o pai de Rosemary, João Rufino de Sá, de 75 anos, foi preso em flagrante e confessou ter dormido ao volante. Passou 12 dias internado num hospital particular sob custódia da polícia, mas pagou fiança de R$ 800 e foi liberado. Agora, responde em liberdade por homicídio culposo – cuja pena máxima é de quatro anos – e não teve a habilitação apreendida.

Olho-de-gato
As concessionárias de rodovias perceberam a necessidade de reduzir o número de acidentes nas estradas que passaram a administrar na década de 1990. A RodoNorte, por exemplo, responsável por 560 quilômetros de rodovias no Paraná, afixou outdoors e painéis com orientações e advertências aos usuários e administra palestras em postos de gasolina para conscientizar sobre o risco de dirigir em situações de cansaço e em excesso de velocidade. As melhorias físicas incluíram faixas com mais visibilidade e a colocação de olhos-de-gato nas margens e entre as pistas. “As campanhas são permanentes, mas, infelizmente, ainda é comum encontrar nos registros de acidentes a sonolência como fator agravante”, conta o gestor de obras da RodoNorte, Élvio Torres.

A Polícia Rodoviária Estadual do Paraná comprova o resultado das mudanças. No trecho de São Luís do Purunã, um dos mais perigosos do estado, os acidentes tiveram redução de 85%. Em Imbaú, onde foram instalados olhos-de-gato no acostamento e na faixa central, o registro de acidentes despencou 73%.
O autônomo Sidney Barreira Dropa, de 29 anos, tem eterna gratidão pelos olhos-de-gato da Rodovia Fernão Dias (BR-381). Há dois anos, Sidney, que mora em São Paulo, voltava de uma festa na cidade de Piracaia (SP), de madrugada. Os três amigos que o acompanhavam dormiam tranqüilamente.
Tinha sido a vez de Sidney não beber e ele ficou incumbido de dirigir. Em Atibaia (SP), a rodovia de faixa dupla tem longas retas e é muito bem sinalizada. Na intenção de chegar logo a São Paulo, Sidney seguia a mais de 100 km/h. “Aí, começou a me dar uns apagões”, lembra ele. “Mas achei que conseguiria chegar.” Pouco depois, um barulho despertou os ocupantes do carro. Sidney retesou os músculos, e virou o volante para dentro da pista. O automóvel derrapou, mas o motorista conseguiu dominar a direção.

Com o coração a mil e suando frio, Sidney resolveu parar num posto, apoiado pelos amigos, todos apavorados. O trabalho de Sidney é fazer entregas em um furgão. Ele dirige durante a semana inteira. “Qualquer um pode dormir na direção. Se não fossem aqueles olhos-de-gato, eu não estaria contando essa história”, diz.
Você dorme ao volante?
Dirigir com sono é muito arriscado. O neurologista Geraldo Rizzo, diretor do Sonolab – Laboratório do Sono de Porto Alegre, alerta:
Quando se está muito cansado para dirigir
• Você não pára de bocejar.
• Você se sente irritável.
• Sua mente perde a capacidade de concentração; os pensamentos ficam desconexos.
• Você perde a capacidade de entender o que significam os sinais de trânsito.
• A memória falha; você não se lembra dos últimos quilômetros.
• Você não avalia bem sua capacidade de seguir em frente.

Para manter-se alerta ao dirigir:
• Não tente dirigir por um período longo demais.
• Evite álcool ou qualquer medicamento com efeito sedativo quando tiver de pegar a estrada.
• Planeje viajar com alguém que fique acordado ao seu lado; faça paradas a cada 2 horas.
• Fique longe dos remédios estimulantes. Eles não são seguros e prejudicam a saúde.

Pesquisas sugerem que as estratégias que os motoristas usam para ficar acordados – abrir a janela, ligar o rádio, parar para esticar as pernas – têm eficácia limitada. Se você começar a sentir sono enquanto dirige, pare e tire um cochilo de 30 minutos.

Bêbado ou com sono?
É difícil distinguir um motorista bêbado de um motorista com sono. Os sinais mais comuns de um motorista com privação do sono incluem:
• Não dirigir em linha reta
• Alternar muito a velocidade
• “Colar” no carro da frente
• Dar cabeçadas

Se você vir alguém dirigindo nessas condições, mantenha distância do
carro e chame a polícia rodoviária.
Sua atitude pode salvar vidas.

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