segunda-feira, setembro 19, 2011

JOVENS VIDAS EM RISCO: O QUE TEMOS A VER COM ISSO?


Fabiana Silveira Secco
(Técnica Superior em Trânsito/Pedagoga – DETRAN/RS)

   Uma recente pesquisa divulgada pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia em fevereiro deste ano, trouxe um dado preocupante: 37% dos jovens universitários ouvidos na pesquisa admitem dirigir após ingerir bebida alcóolica. Porém, a situação torna-se mais grave quando a mesma pesquisa revela que cerca de 80% dos entrevistados que evitam dirigir após beber aceitam carona de colegas alcoolizados. 
   Ao mesmo tempo em que servem de alerta, tais informações são também um convite para que prestemos atenção ao que acontece, para que voltemos nosso olhar ao presente, ao aqui e agora dos fatos e sujeitos. “Cada cultura produz a juventude transviada que é o espelho de seus vícios recalcados”, diz o psicanalista Jurandir Freire Costa. A afirmação de Costa traz à tona importantes questões: que mecanismos são usados para explicar os comportamentos “desviantes” de nossa juventude? Como são narrados nossos jovens quando estes assumem posturas que expõem a si mesmos e aos outros a situações de perigo?
    Em nossa cultura, a juventude é constantemente retratada como um período turbulento, onde a busca pelo gozo imediato e sem fim pode levar à atração por atividades de alto risco, perigosas e até criminosas. Essa proximidade com o perigo, com a violência, com a agressividade, é atribuída, ainda, à onipotência dos jovens, os quais passam a figurar como seres inconseqüentes, imprudentes, principalmente quando estão andando em grupo.
   Dessa forma, acostumamo-nos a vincular os desastres e tragédias envolvendo essa população ao fato de seus participantes estarem em uma fase considerada crítica, de transição, de rebeldia. Se nossos jovens arriscam suas vidas em rachas, se bebem e dirigem, se pegam carona com motoristas alcoolizados, se dirigem perigosamente em alta velocidade, enfim, se a cada final de semana mais vidas jovens se esvaem no trânsito, costumamos limitar a questão aos excessos de nossos jovens, deixando de analisar de que forma nossa sociedade participa dessas práticas.
    A colocação de Jurandir Freire Costa, revela que é preciso ampliar a discussão em torno do comportamento de risco adotado por muitos jovens, indo além das características tidas como inerentes à condição juvenil. É preciso perceber que as condutas de risco, como quaisquer outras, são ensinadas e aprendidas, refletindo o mundo em que vivemos, seus valores e, por isso, não se pode reduzir a discussão ao “instinto transgressor” de uma geração dita superficial e sem limites.

Viver é competir
   Vivemos um tempo marcado pela velocidade e pela competitividade. Muito do que somos hoje é produto de tais imperativos. É preciso estar sempre à frente, ultrapassar o outro, conseguir tudo primeiro, para então alcançar visibilidade, destaque. O “espírito de disputa” exige que nos adequemos a um determinado perfil, geralmente individualista, voltado para nós mesmos, para nossa performance individual, reduzindo a importância do outro. Sob a égide do “eu posso tudo”, “eu sou o melhor”, “comigo nada acontece”, o conflito no espaço público é inevitável.
  O automóvel associou-se à essa imagem da velocidade, da competitividade, da individualidade, e mais: passou a agregar valor social ao seu dono. Com esta constatação é possível entendermos o porquê de muitos comportamentos de risco verificados no trânsito.
  Nós, cidadãos, jovens ou não, somos apresentados muito cedo a um sistema que reserva pouco espaço para a convivência, para a cooperação, para a solidariedade. A sociedade do imediato, do descompromisso com o outro, reproduz indivíduos que no espaço público exibem sua prepotência, sua onipotência. A rua, transformada em área de aparência, torna-se não apenas campo de batalha, mas também espaço para a auto-afirmação.
  Nessa realidade, a posse de um automóvel (ou estar no comando dele) torna-se um meio de realização pessoal. A mídia, por exemplo, embrulha suas produções em narrativas comprometidas com esse discurso. Comercias de TV, novelas, filmes, anúncios de jornal e revista, outdoors, tentam atingir constantemente o espectador, buscando despertar seu desejo de consumir através do apelo à vaidade. Nos produtos endereçados aos jovens, principalmente do sexo masculino, a identificação com o automóvel é feita através de imagens relacionadas à potência, liberdade, status. Esses mesmos valores aparecem associados aos comerciais de bebidas alcóolicas, onde geralmente vemos jovens adultos se divertindo, se liberando, curtindo, se exibindo com determinada bebida nas mãos. É claro que ao final destas produções há um espaço reservado ao tradicional “se beber não dirija”.
   Porém, esta simples frase é quase invisível frente ao estímulo para consumir o produto – que se repete infinitamente –, principalmente para os jovens, para quem o álcool funciona como ingrediente de aproximação com a tão sonhada vida adulta.
   Apresentar a aquisição de um automóvel como modo de adquirir um certo status social, ou ainda associar o gesto de dirigir com um ato de prazer, de liberdade sem barreiras, são fatores determinantes para a disseminação de uma forte cultura automobilística. Essas mesmas estratégias, como anteriormente exposto, também são usadas para apresentar a bebida alcóolica. Em ambas as situações, verifica-se o investimento massivo da mídia em valores e condutas associados ao consumismo e ao gozo ilimitado, pouco explorando a responsabilidade e a maturidade necessárias tanto para comandar um veículo como para ingerir bebidas alcóolicas.
   Essa discussão em torno da conscientização e prudência em relação aos próprios atos, em torno da “liberdade responsável”, não está em escassez apenas nas produções midiáticas. Tais questões minguam em todos os setores da sociedade. A família, uma das instituições tradicionalmente encarregadas da formação ética e moral dos indivíduos, tem se autorizado cada vez menos a tratar de tais assuntos, muitas vezes até transferindo para outras instituições esse papel. Aliás, freqüentemente vemos famílias reproduzindo em suas casas os fortes imperativos do consumismo, do imediatismo, da competição, da liberdade ilimitada e do bem-estar individual acima do bem-estar coletivo. Resultado: desde a infância, muitos de nossos cidadãos são ensinados a comportarem-se como pequenos tiranos que, em casa, na rua, no espaço público, exibem seus desmandos, acreditando que podem tudo, que ninguém os segura, que o mundo reduz-se a apenas um desejo seu: “eu  quero aqui e agora”.

Alternativas possíveis
   Acontece que ninguém pode tudo. Se a família, os pais, não se autorizam a traçar limites, se temem dizer não quando necessário, quem vai delimitar esses limites? Os órgãos de fiscalização? A polícia? Ou será necessário um grave acidente para que a importância da adoção de limites seja sentida? Diante dessa omissão, que cidadãos estaremos formando? É preciso educar para a responsabilidade, para o convívio com o outro, ensinar a pensar no outro, a se colocar no lugar do outro. É preciso questionar as práticas cotidianas de nossa sociedade, seus hábitos, crenças, condutas, enfim, ousar bancar-se diante da geração futura como autoridade e fonte de valores. Nesse sentido, para os pais, a tarefa de educar, segundo Maria Rita Kehl (2003), deve ser encarada como uma forma de: (...) assumir riscos ante a geração seguinte. 
   É claro que, na adolescência dos filhos, os riscos assumidos pelos pais serão cobrados – mais uma vez, nem sempre de forma justa. Mais é possível responder à cobrança adolescente a partir do lugar da responsabilidade: “eu assumi o encargo de cuidar de você e te educar; prefiro correr o risco de errar do que te abandonar”. Este enunciado fundamenta-se no desejo de paternidade ou de maternidade. No limite, o adulto está dizendo: Eu assumo educar você porque eu quis ser seu pai (ou mãe, etc.)”. A recusa a correr este tipo de risco coloca as crianças em estado de abandono. (...) O abandono sofrido pelas crianças mimadas de hoje – qualquer que seja a composição familiar a que pertençam – é o abandono moral.
   Tornar-se referência aos mais jovens, resgatar as funções paterna e materna, descruzar os braços e ousar servir de modelo de caráter, respeito à vida, cuidado com o próximo, abrir os olhos e perceber a importância de responsabilizarmo-nos pela formação de nossos filhos, eis o desafio proposto pela autora. Esse desafio pode ser encarado também como um convite a pensarmos e nos posicionarmos perante as condutas e valores que se apresentam diante de nós, escolhendo conservá-los vivos, continuá-los ou interrompê-los.
   O convite, portanto, é para que pensemos não apenas a questão da responsabilidade em nosso tempo, mas também sobre o nosso círculo ético. Talvez, ao arriscarmo-nos a pensar em tais questões, possamos inaugurar um novo começo, mais voltado à valorização da vida humana. Desafiar, testar limites e capacidades, arriscar-se em situações perigosas para estacar-se, são necessidades de toda uma sociedade voltada à competição e ao individualismo. O sentimento de invulnerabilidade, de onipotência atribuído à juventude, na verdade é uma construção dessa forte cultura que, de alguma forma, inscreve-se nos sujeitos (especialmente nos jovens), regulando-os e transformando-os em “sujeitos desviantes”, que tentam ir além dos limites, arriscando-se a morrer (ou matar) em conseqüência de práticas transgressoras e arriscadas.
    A valorização da vida como bem maior, é algo que se constrói cotidianamente. Aprender a respeitar a vida (a minha e a do outro), preservá-la, protegê-la, depende dos valores que adotamos, dos valores que norteiam nosso modo de viver. Se queremos uma sociedade que exalte a vida, precisamos encarar de frente os imperativos que limitam e impedem o nosso conviver, e não concentrarmos nossa crítica em uma geração inteira, taxando-a de irresponsável, superficial. É preciso olhar primeiro para nossa cultura e investigar que valores nela são estimulados e interditados.
   Somente a partir dessa análise tornar-se-á possível fomentar estilos de vida que sejam menos dilacerantes, menos opressivos, menos determinados pelos ideais da culturada competitividade e do individualismo, e que nos façam viver melhor.

Nenhum comentário: